domingo, 24 de outubro de 2010

O Médico


E de repente, um canto de minha memória se iluminou e eu vi de novo do jeito que o havia visto pela primeira vez: o quadro. Vejo-me menino, na sala de espera do consultório médico. Estou doente e meus olhos passeiam assustados pelos objetos à minha volta.
Pendia solitário, na parede branca. Levanto-me e aproximo para ver melhor. Leio o nome da tela: “O Médico” É a sala de uma casa familiar, iluminada pela luz de um lampião. Numa cama jazia uma menina doente. Seus olhos estão fechados, mergulhados num esquecimento febril. Seu braço pende inerte, sobre o vazio.
A morte a estreitava... A morte tem muitas faces. A dos velhos, por dolorosa que seja, é parte da ordem natural das coisas: depois do crepúsculo segue-se a noite. Mas a morte de um filho é uma mutilação. Naquele quadro uma menina lutava contra a morte. Num canto, o casal, pai e mãe, imagem da impotência. A mãe está debruçada sobre a mesa e chora. O marido, de pé, pousa a mão sobre o ombro da esposa, numa tentativa de consolo, como se dissesse: “também eu estou desamparado.” Está vestido com um pesado capote que nos conta sua viagem pelo frio em busca de socorro. Doutor, venha depressa minha filha...
 Ao lado da menina, assentado, o médico. Ele medita. Seu cotovelo se apóia sobre o joelho e o queixo sobre a mão.
 As porções, sobre a mesinha, revelam que o que podia já havia sido feito. Bem que o médico poderia retirar-se, mas ele espera, permanece, espera, convive com sua impotência. Talvez sua espera meditativa seja uma confissão:- Também estou sofrendo... E os pais da menina amam aquele médico não pelo seu saber, não pelo seu poder, mas pela solidariedade humana que se revela em sua espera meditativa...
Deslumbrei-me com este quadro desde a primeira vez que o vi; a beleza da imagem de um homem solidário, em luta contra a morte. Hoje o quadro já não mais se encontra nas salas de espera dos consultórios médicos. A modernidade transferiu a morte do lar, lugar do amor, para as instituições, lugar do poder. E os médicos foram arrancados desta cena de intimidade e colocados em outra onde as maravilhas da técnica tornaram insignificante a solidariedade de um médico diante da morte.
Mas esta cena não desapareceu de minha memória. E hoje olho para os médicos mais idosos com os mesmos olhos do menino que um dia sonhou ser médico...                           
Dr. Celso Ayres

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