Ao findar de outubro, quando a
primavera já está instalada, as pessoas se preparam para homenagear seus
mortos, evocando-lhes a memória, dizendo a todos que a história da humanidade
está guardada naquele cenário. Eu me
lembro de uma história guardada bem dentro de mim. São momentos de imensa
felicidade vividos diante de um cenário tão singular.
Esta lembrança me faz sentir
uma estranha alegria, ao constatar no ar o perfume de crisântemos. Aflora-me à
memória a lembrança daquela pequena criança, em meio a muitas flores,muitas cores
e ao inconfundível perfume de crisântemo.
Todo ano, na mesma época,
costumava acompanhar meu pai e minha avó a vender flores para que os vivos
relembrassem seus entes queridos já falecidos.
-Hei! Van, você quer ir a
Cordis... hoje, para vendermos flores à porta do cemitério? Era como se me
acionasse uma força eletrizante. Minha avó, sempre pronta a acompanhar meu pai,
nesta tarefa, que para mim parece um tanto quanto feminina, era quem acionava
esta força e me colocava de prontidão.
Para muitos, aquele dia seria de tristeza,
mas para mim prenunciava um dia de festa, muita festa.
Um carro equipado para refrigerar,
repleto de flores, percorria uma estrada que, aos olhos infantis, era muito
longa. Meu pai e minha avó acomodavam-se na cabine da frente.
Em meio a todo tipo de flores e perfumes
ali me atirava com a inocência à flor da pele. Agora era só sonhar! Em meio a
meus devaneios aparecia a minha amiga Tel.
Essa tão querida amiga, só era invisível
aos olhos dos adultos, porque para mim ela era muito real. Seu cabelo de cachos
dourados seu vestido
esvoassante, da cor do céu, me faziam pensar que ela veio voando. Lembrava-me os anjos, punha-me diante de uma formosa bailarina, que como
um cupido, carregava às costas a mágica flecha do amor. Para ela eu poderia
criar todas as fantásticas histórias que desejasse. Neste dia minha mente criou todas as fantasias
que tinha direito. Foi assim e era sempre assim:
- Minha amiga Tel, você me
acompanha a uma grande e bonita festa, que deverá durar o dia todo? (Sem nem
mesmo esperar resposta dava inicio a um enorme discurso). Todas as pessoas da
cidade deverão participar. Virão vestidas com suas vestes domingueiras, abraçadas
aos mais lindos buquês, cultivadas em seus jardins, ou adquiridas em barracas, que
especialmente neste dia, contornam todo o cemitério.Vamos nos divertir como
nunca. Será um dia inesquecível, pelo sol que brilha, pelo perfume no ar, pelos
amigos que vamos encontrar .
Já era grande a movimentação que
encontramos, ao nos aproximar do local, que iríamos nos estabelecer, naquele
dia.
Assim que nos acomodamos, as
portas do carro se abriram, as vendas começaram, meu sonho criou asas e lado a
lado, eu e minha amiga Tel, passamos a participar da festa que estava
iniciando.
Ao atravessar os portões, as pessoas
seriam agraciadas com uma leveza própria das plumas, uma transparência própria
das almas.
Ninguém se esquece da rosa
vermelha. Desde muito cedo, uma enorme procissão se forma, são muitas, muitas
pessoas, ou anjos não sei ao certo, num interminável cortejo, de todas as
idades e vindas de todas as partes. Orações recitadas, numa enorme ladainha,
expressam o anseio dos corações, que prontamente se concretiza.
O som das harpas se completa
com suaves cânticos. As velas acesas, simbolizam o caminho de luz que os
moradores deste singular lugar deverão percorrer. Tudo coroado com o perfume
inconfundível dos crisântemos. O cenário está formado. Todos querem participar
da tão singular festa.
Aquele lugar que geralmente
desperta sentimentos de tristeza, em minha mente infantil, agora se transforma
em um lindo salão de festas.
E eu sonhava e podia ver...
Tudo a meus olhos era muito real. Os parentes que tocassem os túmulos de seus
amados, com aquela rosa vermelha, fariam seus ocupantes despertarem a procura
da vida perdida. Ali tudo se realizava
em um passe de mágica. Numa sintonia de sentimentos e corações, instantaneamente, os
vivos receberiam a leveza das almas, para abrigar sentimentos leves e nobres.
Os adormecidos porém receberiam a capacidade de poderem ser vistos e
tocados.
Por um breve tempo, todos que
ali estivessem adormecidos voltariam a esta espécie de vida. Enquanto as flores
exalarem seu perfume e a luz do sol
brilhasse, esta situação seria mantida, naquele dia.
São pais reencontrando
filhos, são filhos reencontrando pais, são amigos que se revêem .
Estaria formada a grande
festa do amor. Amor é o que movia aqueles ternos momentos.
Tudo era alegria. Cada
momento seria vivido com toda intensidade, como se fosse único. Neste dia neste
lugar só haveria espaço para o amor.
Certezas são firmadas, o bem
revigorado fortalece, o amor gera a confiança que faz desvanecer os sentimentos
degradantes que nos escravizam.
São olhares de alegria, atos
de liberdade, unidade de pensamento. Todos unidos no mesmo sentimento, no que
cada um tem de melhor.
Embebidos no êxtase do amor,
que agora toma conta de todo ambiente, as pessoas exalam felicidade, que é
encontrada na simplicidade das coisas, desejam a felicidade para todos e
descobrem que a separação não existe, enquanto houver um coração capaz de amar.
Tudo está mais bonito por causa da
felicidade, gerada pelo amor. Sim, é esse o alimento que vem do alto, é esse o
alimento das almas e por aquele dia seria
o alimento dos homens.
Por um momento, por um
momento apenas, o céu parece beijar a terra. Pela leveza dos corpos a
delicadeza dos sons são todos convidados a dançar... neste movimento de unidade
leveza e perfeição acontece o êxtase do
amor!!! Os sinos tocam!!! A sensação é de perfeita integração! O tempo poderia
parar ali!!!
Chega o cair da tarde! O sol dá sinal de
cansaço. As flores das barracas se esgotaram. As velas se queimaram. O
perfume dos crisântemos se esvaiu. É
hora de se recolher. Os que já se foram, para o lugar que costumamos dizer de
descanso. Os que estão vivos para a luta, que não nos dá descanço.
Minha amiga Tel desaparece, para voltar
outro dia com novas histórias.
O caminho de volta parece
mais longo ainda. Meu pai e minha avó tomam acento na cabine do carro, no vazio
das flores em meio a folhas e galhos uma criança cansada porém feliz, adormece.
Ah! Esses crisântemos, se
eles soubessem o turbilhão de sentimentos que são capazes de trazer à tona. Um
misto de alegria, felicidade e saudade hoje, invadem repentinamente minha mente,
sem nem pedir licença. Basta aspirar este mágico perfume de crisântemos, e já
invadem a minha memória, a inesquecível festa do amor, que todos os anos a
minha imaginação se alegrava em criar.
Hoje meu pai não vende mais
flores, minha avó sempre amiga das flores as usa para enfeitar festas de
aniversário, ou casamento. A inocente criança cresceu...
- Você minha amiga Tel, você
se foi de vez, meus sonhos infantis desmoronaram pouco a pouco, como um castelo
na areia. As coisas acontecem com mais
dificuldade. A simplicidade das coisas se perdeu na complexidade da vida. A
festa do amor foi um sonho que parece não vai acontecer nunca.
Ah minha amiga! Perdi a
inocência das crianças, perdi o sonhar acordada, perdi a facilidade de criar
momentos de amor em minha imaginação e agora tudo está complicado e diferente.
Onde você está minha amiga? Corre, vem ao encontro de sua amiga de
infância! Traz seu lindo vestido azul! Enrola
seus cachos dourados! Traz a sua flecha do amor! Voltemos juntas aqueles momentos inesquecíveis,
que se perderam! Seja minha companheira de sempre, meu eterno cupido! Voltemos
à simplicidade das mentes infantis, que
por mais que o tempo passe, não pode deixar de existir em nós! Faz-me ver a beleza das flores! Ensina-me a ouvir a
música dos anjos!
Ensina-me a crer e a trazer cravada no peito a
certeza do reencontro.
Vamos, sem demora, acionar aquela
criança adormecida em mim , para que haja esperança de acontecer novamente um dia,
agora no mundo real, a grande festa do amor.
Wanda Teresa Lemos Paiva
São Gonçalo do Sapucaí, 20
setembro de 06