segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Onde está você minha amiga Tel ?



 
   Ao findar de outubro, quando a primavera já está instalada, as pessoas se preparam para homenagear seus mortos, evocando-lhes a memória, dizendo a todos que a história da humanidade está guardada naquele cenário. Eu me lembro de uma história guardada bem dentro de mim. São momentos de imensa felicidade vividos diante de um cenário tão singular.
Esta lembrança me faz sentir uma  estranha alegria, ao constatar  no ar o perfume de crisântemos. Aflora-me à memória a lembrança daquela pequena criança, em meio a muitas flores,muitas cores e ao inconfundível perfume de crisântemo.
Todo ano, na mesma época, costumava acompanhar meu pai e minha avó a vender flores para que os vivos relembrassem seus entes queridos já falecidos.
-Hei! Van, você quer ir a Cordis... hoje, para vendermos flores à porta do cemitério? Era como se me acionasse uma força eletrizante. Minha avó, sempre pronta a acompanhar meu pai, nesta tarefa, que para mim parece um tanto quanto feminina, era quem acionava esta força e me colocava de prontidão.
    Para muitos, aquele dia seria de tristeza, mas para mim prenunciava um dia de festa, muita festa.
        Um carro equipado para refrigerar, repleto de flores, percorria uma estrada que, aos olhos infantis, era muito longa. Meu pai e minha avó acomodavam-se na cabine da frente. Em meio a todo tipo de flores e  perfumes ali me atirava com a inocência à flor da pele. Agora era só sonhar! Em meio a meus devaneios aparecia a minha amiga Tel.
 Essa tão querida amiga, só era invisível aos olhos dos adultos, porque para mim ela era muito real. Seu cabelo de cachos dourados  seu vestido esvoassante, da cor do céu, me faziam pensar que ela veio voando. Lembrava-me os anjos, punha-me diante de uma formosa bailarina, que como um cupido, carregava às costas a mágica flecha do amor. Para ela eu poderia criar todas as fantásticas histórias que desejasse.  Neste dia minha mente criou todas as fantasias que tinha direito. Foi assim e era sempre assim:
- Minha amiga Tel, você me acompanha a uma grande e bonita festa, que deverá durar o dia todo? (Sem nem mesmo esperar resposta dava inicio a um enorme discurso). Todas as pessoas da cidade deverão participar. Virão vestidas com suas vestes domingueiras, abraçadas aos mais lindos buquês, cultivadas em seus jardins, ou adquiridas em barracas, que especialmente neste dia, contornam todo o cemitério.Vamos nos divertir como nunca. Será um dia inesquecível, pelo sol que brilha, pelo perfume no ar, pelos amigos que vamos encontrar  .
       Já era grande a movimentação que encontramos, ao nos aproximar do local, que iríamos nos estabelecer, naquele dia.
Assim que nos acomodamos, as portas do carro se abriram, as vendas começaram, meu sonho criou asas e lado a lado, eu e minha amiga Tel, passamos a participar da festa que estava iniciando.
       Ao atravessar os portões, as pessoas seriam agraciadas com uma leveza própria das plumas, uma transparência própria das almas.
Ninguém se esquece da rosa vermelha. Desde muito cedo, uma enorme procissão se forma, são muitas, muitas pessoas, ou anjos não sei ao certo, num interminável cortejo, de todas as idades e vindas de todas as partes. Orações recitadas, numa enorme ladainha, expressam o anseio dos corações, que prontamente se concretiza.
O som das harpas se completa com suaves cânticos. As velas acesas, simbolizam o caminho de luz que os moradores deste singular lugar deverão percorrer. Tudo coroado com o perfume inconfundível dos crisântemos. O cenário está formado. Todos querem participar da tão singular festa.
Aquele lugar que geralmente desperta sentimentos de tristeza, em minha mente infantil, agora se transforma em um lindo salão de festas.
E eu sonhava e podia ver... Tudo a meus olhos era muito real. Os parentes que tocassem os túmulos de seus amados, com aquela rosa vermelha, fariam seus ocupantes despertarem a procura da vida perdida.  Ali tudo se realizava em um passe de mágica. Numa sintonia de sentimentos e corações, instantaneamente, os vivos receberiam a leveza das almas, para abrigar sentimentos leves e nobres. Os adormecidos porém receberiam a capacidade de poderem ser vistos e tocados.    
Por um breve tempo, todos que ali estivessem adormecidos voltariam a esta espécie de vida. Enquanto as flores  exalarem seu perfume e a luz do sol brilhasse, esta situação seria mantida, naquele dia.                           
São pais reencontrando filhos, são filhos reencontrando pais, são amigos que se revêem .
Estaria formada a grande festa do amor. Amor é o que movia aqueles ternos momentos.
Tudo era alegria. Cada momento seria vivido com toda intensidade, como se fosse único. Neste dia neste lugar só haveria espaço para o amor.
Certezas são firmadas, o bem revigorado fortalece, o amor gera a confiança que faz desvanecer os sentimentos degradantes que nos escravizam.
São olhares de alegria, atos de liberdade, unidade de pensamento. Todos unidos no mesmo sentimento, no que cada um tem de melhor.
Embebidos no êxtase do amor, que agora toma conta de todo ambiente, as pessoas exalam felicidade, que é encontrada na simplicidade das coisas, desejam a felicidade para todos e descobrem que a separação não existe, enquanto houver um coração capaz de amar.
     Tudo está mais bonito por causa da felicidade, gerada pelo amor. Sim, é esse o alimento que vem do alto, é esse o alimento das almas e  por aquele dia seria o alimento dos homens.
Por um momento, por um momento apenas, o céu parece beijar a terra. Pela leveza dos corpos a delicadeza dos sons são todos convidados a dançar... neste movimento de unidade leveza e perfeição  acontece o êxtase do amor!!! Os sinos tocam!!! A sensação é de perfeita integração! O tempo poderia parar ali!!!   
     Chega o cair da tarde! O sol dá sinal de cansaço. As flores das barracas se esgotaram. As velas se queimaram. O perfume  dos crisântemos se esvaiu. É hora de se recolher. Os que já se foram, para o lugar que costumamos dizer de descanso. Os que estão vivos para a luta, que não nos dá descanço.
     Minha amiga Tel desaparece, para voltar outro dia com novas histórias.
O caminho de volta parece mais longo ainda. Meu pai e minha avó tomam acento na cabine do carro, no vazio das flores em meio a folhas e galhos uma criança cansada porém feliz, adormece.

Ah! Esses crisântemos, se eles soubessem o turbilhão de sentimentos que são capazes de trazer à tona. Um misto de alegria, felicidade e saudade hoje, invadem repentinamente minha mente, sem nem pedir licença. Basta aspirar este mágico perfume de crisântemos, e já invadem a minha memória, a inesquecível festa do amor, que todos os anos a minha imaginação se alegrava em criar.
Hoje meu pai não vende mais flores, minha avó sempre amiga das flores as usa para enfeitar festas de aniversário, ou casamento. A inocente criança cresceu...
- Você minha amiga Tel, você se foi de vez, meus sonhos infantis desmoronaram pouco a pouco, como um castelo na areia.  As coisas acontecem com mais dificuldade. A simplicidade das coisas se perdeu na complexidade da vida. A festa do amor foi um sonho que parece não vai acontecer nunca.
Ah minha amiga! Perdi a inocência das crianças, perdi o sonhar acordada, perdi a facilidade de criar momentos de amor em minha imaginação e agora tudo está complicado e diferente.
Onde você está minha amiga?  Corre, vem ao encontro de sua amiga de infância! Traz seu lindo vestido azul! Enrola  seus cachos dourados! Traz a sua flecha do amor!  Voltemos juntas aqueles momentos inesquecíveis, que se perderam! Seja minha companheira de sempre, meu eterno cupido! Voltemos à simplicidade das  mentes infantis, que por mais que o tempo passe, não pode deixar de existir em nós! Faz-me  ver a beleza das flores! Ensina-me a ouvir a música dos anjos!
 Ensina-me a crer e a trazer cravada no peito a certeza do reencontro.   
Vamos, sem demora, acionar aquela criança adormecida em mim , para que haja esperança de acontecer novamente um dia, agora no mundo real, a grande festa do amor.

                                                  Wanda Teresa Lemos Paiva
                                       São Gonçalo do Sapucaí, 20 setembro de 06

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