terça-feira, 30 de agosto de 2011

Cidades pequenas têm coisas interessantes

Cidades pequenas têm coisas muito interessantes mesmo. Fogem à compreensão de qualquer ser humano mais polido e civilizado.
Estive em uma reunião onde fiquei a observar as muitas pessoas que iam e vinham no local. Participávamos do mesmo evento. Era um alvoroço, um entra e sai, muitas rodinhas onde a conversa rolava solta. O tom da conversa estava bem acima do normal. Risadas descontraídas ouvia-se aqui e acolá.  Em uma sala ao lado, uma mesa com todo tipo de mistura, salgados, refrigerantes e café. Tudo muito normal se tivéssemos em uma reunião de escola, aniversário, comemorando conquistas, etc... O triste, que até fica cômico, é que estávamos todos reunidos para despedirmos de um amigo, em um animado velório.
A modernidade faz questão de fazer tudo parecer normal. Isto me deixa um tanto insegura, sem saber onde está a linha divisória entre o normal e o absurdo. O que me levou a indagar:
- Minha filha, você está achando normal esta movimentação toda?
- Está bem exagerada minha mãe, mas também o defunto não impõe respeito, acontece o que estamos vendo.
- Defunto tem que impor respeito? Como assim? Nunca pensei nisso! Nunca imaginei que defunto deva impor respeito. Defunto para mim é um ser inanimado que não impõe coisa alguma, muito menos respeito.
-Estou dizendo do respeito que deveria ter tido consigo mesmo durante a vida, para que fosse respeitado depois da morte. Foi a explicação de minha filha.
- Para mim eu tenho que, são as pessoas que não tem educação. Não sabem respeitar os sentimentos dos parentes. Comentou a professora Dirce.
- Eu estou sentindo que estou em uma animada festa. Comentou Carol.
- Antigamente tinha-se o maior respeito. Usava-se roupa preta. Tudo no maior silêncio. Recitavam muitas rezas. Observou Tia Filomena.
- As pessoas estão se encontrando pouco e quando se encontram vão colocar as fofocas em dia, sem pensar onde estão. Esta foi a filosofia barata do professor Pacheco.
Lúcia sai, sorrateiramente, procurando outra rodinha onde as fofocas estejam rolando com mais liberdade, sem as vãs filosofias.
As horas iam passando e a movimentação estava cada vez mais exacerbada.
Uma amiga aproxima-se e comenta:
- Ouvi dizer, não provo nada, mas estão dizendo, que foi vontade do defunto que se servisse bebida durante o velório. E ela está rolando aí pra quem quiser.
- Acho então que está explicada esta animação exagerada, que está nos assustando. Comentei.
Trocam-se receitas de culinária, de remédio, até de bem viver, com a maior liberdade. Comenta-se sobre o concurso de Miss Brasil realizado no país, este ano, a luta de UFC que foi um sucesso, as olimpíadas que estão para vir, copa que vai acontecer em breve, assaltos a caixas eletrônicos, a epidemia das drogas rolando solto... Por aí vai desfilando um rosário de acontecimentos mundanos, que ocuparam os noticiários estes dias. Agora estão ocupando o lugar do rosário recitado pelos devotos da Mãe de Jesus, que há bem pouco tempo era bem lembrado nos velórios.  Mas também o defunto não impõe respeito!
O que chamou a atenção ao meu lado foi a aproximação de uma solteirona, onde estavam assentados, dois solteirões. A conversa animou-se rapidamente, porém em tom moderado, como se quisesse respeitar o momento. Disfarçadamente, mas com muita liberdade, a solteirona aproxima-se bem de seus ouvintes passando a esfregar-lhes os joelhos, num ato libidinoso. Era um momento de deliberada sexualidade aflorada. Era o que estava faltando naquele cenário, no mínimo curioso, onde o defunto não impõe respeito... O ato de atrevimento parece ter agradado os “moços” ao lado, que ficam a olhar, com olhares cobiçosos, quando a “moça” sai toda provocante, caminhando consciente do sentimento despertado em seus amigos ouvintes.
Do outro lado, mais à frente, formou-se uma roda de descasadas. Com o olhar decepcionado, ora olham para as interlocutoras, ora para o defunto ali exposto. Tratava de esperança de novos amores para alguma delas. Agora é tudo uma decepção.
Aliás, não fosse o falatório, o grande número de descasadas e os celulares que tocavam de um canto a outro, eu jurava que tínhamos voltado no tempo 20,30,40 anos atrás. Este sentimento aflorou-me quando passei a perceber as vestimentas e os penteados que as “moças” usavam. Formou-se um verdadeiro museu ambulante aquele desfile ultrapassado de coroas. Mas também o defunto não impõe respeito.
Mais uma rodinha e alguém lembra o que anima toda roda:
- Dentro em pouco teremos eleições municipais, vocês estão se lembrando disso?
-Quem pode esquecer, com tamanha movimentação de políticos, no local?
- Estão sensibilizamos, com a perda de um eleitor?
- Talvez, mas principalmente desejam conquistar os familiares neste momento de dor.
- É mais uma maneira de poder permanecer nos cargos que ocupam. É o grande desejo de servir a população.
- Eh tá cargo cobiçado. Nunca vi tanta gente se dispor a servir a população, como hoje em dia.
- E este prefeito que insiste em ficar de olho fechado?
- Não é preciso impor respeito?
- Quem o defunto?
- Não o prefeito.
- Os amigos mais chegados do moribundo vão aparecendo. Gente muito esquisita, muito estropiada, efeito de muito álcool. Esses fantoches ambulantes aos poucos vão se reunindo em torno do féretro, assustados e sensibilizados com a perda do companheiro. É o resultado da falta de respeito que não têm consigo mesmo. Um deles mais exaltado, mal pode equilibrar-se, adentra marcando uma horizontal cheia de curvas e dirige-se ao amigo ali exposto. Aproxima-se abrutada mente do caixão, que em um ato tão rápido escorrega dos descansos e sem que ninguém                                             possa socorrer, vai ao chão. Que desastre desagradável! O silêncio tão desejado se instala agora. Até o corpo já inerte e meio petrificado, escorrega e sai de seu leito, como se aquele lugar não estivesse confortável para ele. Há uma correria geral. Todos querem colaborar para que a situação volte rapidamente ao normal. É o efeito da falta de respeito que o defunto não inspira.
Dentro em pouco sai o cortejo. Deverá ir à igreja para recomendar o defunto. Este deve ir bem contrariado, pois passou a vida toda fugindo daquele lugar. Ali achava que Deus estaria sempre com o dedo apontado para ele. Efeito da vida desregrada que levava. Agora ele não tem querer. Vai sim passar na igreja. As pessoas acham que este ato apaga todos os afastamentos que tivera e o aproxima de Deus. 
Mas agora?
                                          Wanda.30/08/11  

  

Nenhum comentário:

Postar um comentário