quarta-feira, 4 de agosto de 2010

O licor irlandês

Dr. William Moffitt Harris (médico pediatra sanitarista. Professor doutor aposentado da USP. Coordenador nacional do MMCL(movimento médico cafezinho literário).


Eram já oito horas da noite e minha esposa lavava as coisas do jantar na cozinha. Ainda morávamos em Osvaldo Cruz na Alta Paulista. Resolvi telefonar para o colega e nosso amigo José Afonso Tavares e convidá-lo para bater uma prosa em casa. Também já tinha jantado.
Assim que chegou falei:
- Tavares, hoje é o dia nacional da Irlanda e meus irmãos e eu, como bons descendentes daquele estóico e bravo povo, costumamos festejar tomando um golinho, e apenas um golinho, de um licor de lá veio especialmente para a gente. Tanto é, que dividimos a garrafa em quatro e cada um ficou com um pouco. Nem rótulo minha garrafa tem.
Fui buscar minha garrafa na despensa e me desculpei enquanto tirava o pó, porque só a pegávamos naquela data, uma vez por ano.
Tavares me acompanhava com o olhar. Era de falar pouco, quando atento.
Derramei um pouquinho em dois pequenos cálices para licor, tomando o cuidado de não passar da metade e informei:
- Só tem uma coisa, Tavares: tome bem de vagarzinho porque é forte; na verdade é muito forte. Sabe como é o clima lá naquelas partes, Irlanda, Escócia, Noruega, etc. O povo lá é acostumado com coisas mais fortes do que a gente aqui nos trópicos, mesmo em fins de outono, como é agora.
E, bem lentamente, dava o exemplo. Não tínhamos nenhuma bolacha típica Irlandesa para oferecer, mas a Maria Lúcia tinha torrado um pouco de amendoim. Continuamos a conversa trivialmente e eu observava meu amigo de perto, porque sabia o quanto ele era influenciável por uma boa conversa.
Não deu outra.
- Mas que bebida gostosa, Wuiliam. Realmente é muito, muito forte. Acho que nuca tomei algo tão alcoólico em minha vida. E que sabor! Dá a impressão de ser de alguma dessas frutas exóticas dos Alpes que a gente nem conhece.
- Dos Alpes, não diria, Tavares, mas, provavelmente, dos morros perto de Cork no sul da Irlanda onde vivem alguns de meus antepassados.
Já tínhamos esvaziado nossos cálices, tomando o famigerado licor, de golinho em golinho, de permeio ao amendoim.
- Que coisa forte William. Sabe que estou até me sentindo meio tonto?
- O que é isso, Tavares, imagine só se meio cálice deste vai lhe afetar. Eu servi só um pouquinho, principalmente porque o licor da garrafa precisa durar pelo menos mais dez anos.
- Não, fora de brincadeira, William, meu caro colega, já nem estou enxergando direito. Não vou nem tomar o restante. Acho que você vai ter que me levar para casa, depois desta. Amanhã cedo venho pegar o jipe.
Fiquei, realmente, preocupado. E se o Tavares tivesse um coma hipoglicêmico psico- induzido?
- Eta, doutor Tavares, sabe o que o nobre colega acabou de tomar?
- Ué, você já não me disse que era licor Irlandês?
- É, mas foi somente uma brincadeira. Acabamos de tomar Vinho Reconstituinte Silva Araujo Roussel di Sarsa ! Poderíamos tomar o vidro todo e, certamente, acostumados que somos a uma boa caipirinha que você me ensinou a fazer, nada sentiríamos.
Recuperou-se na hora e desandou a rir. Acendeu seu cigarro de palha e, entre tossidas, pigarreadas e baforadas, deu muitas gargalhadas.
Continuamos bons amigos até seu falecimento aos oitenta e cinco anos de idade em novembro de 2007.


Todo grupo do movimento MLSS (movimento literário saber e sabores) de São Gonçalo agradece ao Dr. William suas visitas constantes, em nossas reuniões.

Nenhum comentário:

Postar um comentário